domingo, 24 de agosto de 2008

Desafio de voltar para casa


O Hospital São Pedro passou pelo processo de reforma institucional,e as primeiras mudanças do sistema podem ser sentidas.

Lugar de louco é no manicômio. A idéia faz parte de um passado que os defensores da inclusão de doentes mentais na sociedade querem ver pelas costas. E estão acompanhando, pelo menos os primeiros passos, para essa concretização: alguns pacientes que já estiveram internados no Hospital Psiquiátrico São Pedro agora moram em casas, ganham o próprio dinheiro e tem o direito de gerir suas vidas.
A Residência Terapêutica Morada São Pedro é esse novo lar. A lei Antimanicomial número 10216 de 6/4/2001 oficializou a transferência do tratamento que se concentrava na instituição hospitalar para uma rede de atenção comunitária e aberta.
O HPSP, que abrigou doentes mentais por mais de 120 anos, segue agora as tendências da nova psiquiatria que prega a desintitucionalização.
O processo é gradual, encontra dificuldades e busca soluções para a inclusão dos pacientes na sociedade. A construção da cidadania é o maior desafio.
É um trabalho psicossocial amplo. Envolve grande mobilização. Mais de 30 profissionais de diversas áreas trabalham no local: massoterapeutas, psiquiatras, enfermeiros entre outros. Na vila São Pedro, uma comunidade já existente na parte de trás da instituição hospitalar, 27 casas foram construídas. Cada uma comporta quatro internos e um técnico plantonista. De 50 a 60 pacientes já foram alojados.
A transição para a Morada é feita em etapas. Pacientes das mais diversas alas são avaliados e acompanhados por aproximadamente 30 dias até a total instalação na casa.
Nas casas, conquistam um direito simples: liberdade de escolha. Nenhum doente mental é obrigado a realizar atividades ou permanecer nas casas.
“O complicado da transação é que pessoas internadas por mais de 30 anos precisam aprender coisas básicas do cotidiano. Como um simples fechar de porta’’, explica a estudante de psicologia Michelle dos Santos Ramos que estagiou na Morada São Pedro.
A idéia é que não seja apenas uma troca de endereços. É um processo de socialização. No hospital, há uma rotina fixa. Três refeições diárias, entrega de remédios e a partir das 18h30min os internos começam a dormir. Nos lares, essas pessoas descobrem outras formas de aproveitar o dia. Precisam ter responsabilidades. Manter uma casa implica em limpar, cozinhar e arrumar.
Os funcionários não fazem tudo por eles. E sim, com eles. “E muito mais fácil resolver por eles. Ensinar, acompanhá-los nas atividades, é bem mais difícil”, diz a educadora física-sanitarista Vera Resende, que também foi uma das responsáveis pelo projeto Morada. “Foi uma inserção de espaços e valores que antes não lhes pertenciam. Se não fechar a porta, entra ladrão. A luz precisa ser apagada. A casa arrumada.”
O programa De Volta para Casa consiste em um auxilio federal de R$240 para os doentes instalados em casas.Porto Alegre foi um dos primeiros a implantar a bolsa, que veio como alternativa em 2003. Financiado pelo SUS, mais de 50 pessoas se beneficiaram. O beneficiado usa o valor como preferir. Difere do auxílio que já recebiam do governo estadual, o Fundo Loas, no qual é necessário prestar contas- do fumo à comida. Apesar do valor maior, R$405, o Loas interdita as pessoas, que tem suas escolhas sujeitas à aprovação. Elas não podem gerir seu dinheiro.
No local ,onde foi construída a Morada, há uma vila. Uma comunidade carente instalada em um terreno invadido que aguardava a liberação fundiária. O governo prometeu a eles a construção de casas populares. A população as recebeu simultaneamente a construção da Morada São Pedro. 30 casas para os moradores da vila, ao lado das 27 dos desintitucionalizados. Entretanto, não foram suficientes para todos da comunidade local, que continua boa parte, morando em casebres.
''Muitos dos doentes têm medo de morar lá. A região tem tráfico, os saques são constantes’’, diz a estagiária Michele Ramos.
Vera Resende justifica que a morada foi instalada na região por diversos fatores. Primeiro, a disponibilidade. O terreno foi doado. O ideal do projeto de desintitucionalização são casas espalhadas por diferentes bairros da cidade. Cada paciente poderia contar com o apoio de Centros de Apoio Psicossociais locais, CAPS, como acontece em outras partes do país. Porém, o ideal é muito mais caro.
Também há a questão política. O projeto que estava em andamento desde 1999 não poderia esperar a troca de governo. Mudança governamental acarreta em mudanças de prioridades. Não havia como perder a oportunidade.
Vera acredita que outros bairros seriam hostis à instalação das casas, porque existe preconceito com o projeto. “Os moradores de bairros mais nobres não iriam aceitar ter como vizinho um doente mental, é preciso uma conscientização da sociedade.’’ A proximidade com o hospital facilita a assistência psiquiátrica.
A física-sanitarista acredita que a interação foi bem sucedida. Muitos moradores começaram a trabalhar nas casas dos próprios ex-internos. A questão da violência, ela diz ser um problema de toda a cidade, não só da vila.
Muitos funcionários do São Pedro não são a favor da troca de residência. Assim, perdem a segurança do emprego dentro do hospital. Tentam convencer os internos que não vale a pena o mundo de fora. Mais de 50% fica com medo de abandonar a instituição.
Aos poucos, os pacientes vêem que a advertência que recebiam não passava de um susto. E que há conveniências na mudança. Uma pesquisa recente revela que ouve uma melhora na maneira de resolver os problemas diários e uma diminuição na medicação.
Os internos do São Pedro faziam serviços obrigatórios: lavagem de carro, agricultura e crochê. Um mês de colheita era remunerada em R$50.
Uma senhora, que preferiu não ser identificada, comenta que trabalhou toda a vida no São Pedro. Agora, considera-se aposentada na Morada. Diz aproveitar o descanso e fazer apenas as atividades que a interessam como a oficina de modelagem.
Os pacientes foram muito além dos muros do São Pedro. Em 2005, três residentes em saúde elaboraram uma produção escrita intitulada A História de uma Travessia sobre a transição dos pacientes. Ela acabou recebendo menção honrosa no III Congresso de Saúde Mental e Direitos Humanos realizado em Buenos Aires. E os pacientes, acompanharam a premiação e viveram uma nova experiência com a viagem à Argentina.

Um jornalista no manicômio

A situação dos hospitais psiquiátricos no Brasil já era degradante na década de 70, tanto que o jornalista Sérgio Capparelli, então com 20 anos, resolveu viver a experiência de uma internação no HPSP. O resultado de desesperantes 30 horas passadas na instituição foi publicado em uma série de reportagens no extinto jornal Folha da Manhã.
Capparelli diz ter entrado no dia 30 de outubro de 1975 em uma prisão. Tudo era fechado à chave, nenhuma janela aberta. A ameaça da injeção tranqüilizante impunha ordem entre os internos. Os comprimidos soníferos eram entregues nas refeições. O repórter não os engoliu.
Os detalhes foram captados ao anoitecer. O refeitório era um circuito fechado de loucura. Não havia realidade que sustentasse o ambiente.
Capparelli diz que os sedativos davam aos alienados uma tranqüilidade diferente, desesperada. Depois, sob o efeito de sono e de remédios, soltavam palavras ao acaso:

-Felicidade foi embora!
-Você conhece Maomé?
-Paizinho! Não deixe ele fazer isso comigo!

O cigarro definia o status. Controlado pelos funcionários, quem possuía o fumo se diferenciava entre os internos de uniforme azul e letras garrafais HPSP no peito.
Bêbados, mendigos, débeis e velhos. Toda a escória da sociedade estava no São Pedro, indiferentemente tratados.
Atualmente em Bruxelas, o jornalista Capparelli comenta sobre a experiência. Na época, o hospital abrigava 4 mil internos. Ele ficou na ala dos indigentes, alegando não ter família na cidade. A idéia da matéria surgiu logo após voltar da Europa e conhecer instituições que tratavam a loucura de outra forma. Em Munique as instituições eram auto-geridas pelos loucos. Os britânicos pregavam a anti-psiquiatria. A pauta tinha o intuito de relatar a violência da instituição psiquiátrica.
Comenta não ter sentido medo. Entretanto, não dormiu por precaução. Não aprova toda a exposição que passou para realizar essa matéria. Os surtos dos pacientes eram constantes. “Lá, eu comi bem. Note que bem é muito relativo. Eu diria que comi melhor do que em uma casa de estudante’’. Ficou satisfeito com a repercussão da matéria que mostrou para a sociedade um sistema de saúde mental falido.

Uma imagem e seu personagens


O Hospital agora mostra sinais do tempo. As paredes estão descascadas, sujas e cobertas de limo. Nos gramados da instituição, vagam homens ao sol.
O vigia ainda controla o cigarro dos ainda internos. Por não ter ganho o seu, uma senhora fuma um pedaço de jornal. Ela sorri. A boca com poucos dentes não emite qualquer palavras.
Dois homens estavam do lado de fora dos portões, Cleiton e Lauri, e diziam esperar o ônibus das cinco.
O menino Cleiton, de 17 anos, não tem um dos olhos. Os cadarços do tênis foram tirados para não correr perigo em momentos de crise. Recebeu alta depois da segunda vez internado. Pretende terminar o Ensino Médio e trabalhar como engraxate.
Lauri acabara de sair da internação. Estava na ala de agudos Mario Martins. “Saí meio pateta, meio bisonho. Tava fazendo muito tratamento, tomando muito remédio’’. Ele diz que uma inflamação no dente o colocou no hospital. “A dor deixa um meio louco’’. Quando foi internado, disse que o confinavam em um corredor. “Capaz que esse monte de guarda vão deixar a gente sair’’.
Um casal caminha em direção ao São Pedro. Nas mãos, sacolas de supermercados. Ex- internos. Atuais residentes da Morada. Casados.
Os símbolos são múltiplos. A liberdade de sair. O consumismo e o direito de escolha. A união de pessoas que por anos foram separadas por alas. A reforma institucional.
fotos: Alexandre Külnig

Um comentário:

polidori disse...

Gostei deste post sobre o São Pedro e o serviço de residencia terapeutica (Morada).
Sabe que... de médico e louco todo mundo tem um pouco né...
E nossas loucuras podem ser estas nossas peculiaridades. Algumas delas inaceitáveis para alguns. Bom poder encontrar pessoas que nos aceitam como somos, ou ainda compartilham destas loucuras, nossa peculiar maneira de ver o mundo.
Triste ser abandonado por todos.(?) Ter de reaprender a viver, (re)fazer (novos) laços de amizade, encontrar nossos pares... Pode ser um nascer de novo. Pode ser aprender a lidar com nossas limitações. Nós ditos normais temos nosso lugar (temos?) na sociedade, e descobrimos no dia-a-dia quem somos e o que podemos fazer, quais nossos pecados. Que os "anormais" (a minoria, os extremos) também tenham.